Vanner Boere Souza (IHAC/CJA/UFSB)


    Depois de alguma reflexão, resolvi escrever um texto autoral, estritamente pessoal, que não reflete necessariamente o pensamento do campo de escolha que fiz para a reitoria da UFSB. É um pouco sobre democracia e participação nas IFES. São muitas as leis e regulamentos relacionados aos fundamentos e ao funcionamento das universidades federais. As universidades são territórios historicamente comprometidos com a liberdade de pensamento e de expressão, princípios básicos daquilo que entendemos como democracia no Brasil. Como outros nichos de resistência social, as universidades se engajaram nas últimas décadas, em muitos avanços sociais como o voto direto para presidente de república, a redemocratização, a construção de um projeto engajado com a justiça social e a preservação da memória do país.

    Enquanto uma parte da comunidade universitária se engajou na formação intelectual e na ação para diminuir as desigualdades e injustiças sociais, esse movimento não foi sem contradições e tentativas de anulação. Uma parte da comunidade universitária, seja por origem de classe ou por formação político-partidária, se opôs aos avanços, com movimentos não somente na esfera do poder legislativo, mas dentro das próprias instituições, em seus órgãos colegiados. Isso em parte, foi fruto do desmonte das IFES durante o regime militar, que deixou um rastro de perseguições, demissões e nomeação de asseclas do regime, que dominaram as instâncias de decisões universitárias. Para sustentar essa anomalia da democracia, foi necessário modificar as regras e operações assim derivadas do regime militar autoritário. Estabeleceu-se o distanciamento das universidades de seu contexto social, do seu 2 território, não se permitindo a participação da população nas esferas de decisão. Muitos gestores foram nomeados nessa época, permanecendo durante muitos anos no comando das universidades. Assim tal como visto na área acadêmica, também na esfera política as IFES se fecharam em “castelos de marfim”.

    Com o advento de governos civis, um pouco mais afeitos ao diálogo, as IFES foram aos paulatinamente recuperando um pouco do terreno democrático e autônomo que as caracterizavam por princípios e fundamentos. Desde 2002, quando um governo identificado com as forças populares assumiu o poder, as universidades assim como a sociedade em geral avançaram na democracia, instituindo mais e mais decisões populares participativas. Particularmente, a comunidade acadêmica começou a escolher os seus reitores e se estabeleceu alguns dos princípios da democracia, como a escolha por voto e a alternância em cargos de poder. Em termos de produção acadêmica, efervescência de ideias e melhorias na inclusão universitária, esse período foi profícuo. Até 2016, quando há um brutal retrocesso político no país. Desde de 2016, um ano tão traumático para a política no Brasil, as IFES em encontrado um estado crescente de abandono, que se refletiu em muitos aspectos, como a autonomia e a democracia universitária. 

    Os inimigos do ensino público, gratuito, inclusivo e de qualidade, não desapareceram. Ao contrário, aproveitaram as mínimas imperfeições para atacar as universidades. Eles sabem que somos um dos territórios de resistência contra a democracia. Infelizmente, muitos de nós que compomos a comunidade universitária, não entendemos todos os meandros desse jogo contra as universidades. Por isso, precisamos resistir para semear dias melhores. Precisamos continuar a aprender com nossos erros e acertos, tentar fazer o que nos é impedido com a pratica diária de ensino, aprendizagem, pesquisa e extensão. Precisamos resistir sob todos os aspectos da vida universitária, dando exemplos de democracia. 

     As universidades são territórios livres de pensamento, de expressão, de criação, de contestação, de crítica e autocritica. Somos assim porque temos uma “função social” (previsto na Constituição Federal) e o nosso compromisso é com o saber e a cultura. Não somos uma empresa privada, um mercadinho ou uma companhia hereditária. Não podem as IFES se render às modas e conveniências imediatistas, mas zelar pela austeridade e compromisso com uma sociedade democrática. Esse compromisso das universidades é baseado na lógica de um conjunto de princípios, os quais destaco o pluralismo de ideias, o respeito à diversidade, a vanguarda em inovação, a busca incessante pela justiça social e o diálogo como práxis.

    Pergunta-se: é possível esses princípios serem praticados quando há problemas com o desejo de alguns docentes se eternizarem em determinados cargos de gestão? Não há uma contradição entre o desejo pessoal d esse manter no poder e a democracia nas universidades? Há algumas evidências de que essa contradição existe. Infelizmente há alguns exemplos de longas carreiras de docentes unicamente na administração das IFES, com consequências ruins para a democracia. Vou na raiz do fato: Por que algum professor, com sua proverbial vocação para o ensino, pesquisa e extensão, quereria se perenizar no cargo de gestão? São muitas as explicações, mas vou me ater à um ou dois aspectos psicossociais. 

    Tenho a tendência a concordar com alguns pesquisadores e filósofos sobre a natureza humana. É comum em muitos seres humanos o desejo de se manter no poder, manter o status quo, sem sair da zona de conforto. Dizem os analistas que conhecem o poder, de que o mesmo é uma hera que enfeitiça, mas aprisiona e enrijece o ser humano que há em nós. Alguns pesquisadores ainda encontram outras explicações para o apego ao cargo de mandatário: um “destino manifesto” ou refúgio contra os seus fantasmas. Ademais, alguns pragmáticos afirmam que os proventos são substancialmente melhorados nesses cargos, o que cria segurança material para o gestor. Será que isso tudo explica esse desejo?

    Eu não sei o que se passou ou se passa com esses dirigentes que querem permanecer no poder por longos anos. Não tenho a resposta, mas sei que esse apego ao cargo e ao poder, não faz bem para a democracia. Esse apego e vontade de se solidificar em cargos de poder, é um contrassenso quando sabemos que ser docente é professar um compromisso com várias das atribuições que temos. Quando entramos na carreira docente das IFES, sabemos que existem normas a serem seguidas. No Decreto N o 94.664, de 23 de julho de 1987, Título III, do Pessoal Docente, Capítulo I, das Atividades do Pessoal Docente, o artigo 3º expressa que: “São consideradas atividades acadêmicas próprias do pessoal docente do ensino superior; I - as pertinentes à pesquisa, ensino e extensão que, indissociáveis, visem à aprendizagem, à produção do conhecimento, à ampliação e transmissão do saber e da cultura;” E “II - as inerentes ao exercício de direção, assessoramento, chefia, coordenação e assistência na própria instituição, além de outras previstas na legislação vigente”. 

    A redação dessa lei traz uma sutileza que passa despercebida quanto aos afazeres docentes de uma instituição federal. A palavra “pertinentes” se refere às atribuições acadêmicas que devem significar pertencimento do sujeito ao seu afazer, em ensino, pesquisa e extensão. Quando se fala de atividade administrativa, a redação se refere à inerência, à origem da atividade do cargo que exercerá, não como condição especial de pertencimento. Interpreto que exercer a atividade administrativa é transitório e, portanto, é provisório, dada a natureza política do cargo em uma democracia. Para ser docente há que se pertencer às atividades de docência: ensino, pesquisa e extensão. Que são indissociáveis. Há que se pertencer à faina diária da aprendizagem, da produção do conhecimento, da ampliação e transmissão do saber e da cultura. Portanto, é salutar que exerçamos em sua plenitude o ofício que escolhemos: pertencer à docência e, quando necessário, transitar na administração, mas sem “pertencer” à ela. 

    Infelizmente, alguns docentes esquecem desses fins e fundamentos, acomodando-se na administração, ou somente se dedicando ao ensino; ou à pesquisa. Permanecem anos e, às vezes, exclusivamente em uma só das atividades. Vou dar um exemplo interessante. Até pouco tempo atrás, se construiu nas IFES, oficiosamente, o papel do professor pesquisador, somente; ou do professor de classe somente. Na pratica era assim: um professor que liderasse um grande e poderoso grupo de pesquisa, laboratório etc., ficava somente na gestão do seu laboratório/grupo de pesquisa, sem (quase) entrar em sala de aula e ministrar classes. Argumentavam esses docentes-pesquisadores de que a experiência adquirida na pesquisa era imprescindível para liderar e manter os avanços no seu campo de conhecimento. O docentepesquisador nessa condição ministrava pouquíssimas aulas ou simplesmente convocava alguns orientados a ministrar as aulas. 

    Em 2012 (se não me falha a memória), recebemos o aviso do MEC regulamentando que os docentes devem exercer atividade em sala de aula, mesmo aqueles que sejam chefes de laboratório ou líderes de grandes grupos de pesquisa. Não escrevo aqui de gestor; falo de pesquisa e ensino. A experiência adquirida por esses professores líderes é reconhecidamente importante para a orientação desses grupos, mas sobretudo, é imprescindível para o ensino dos estudantes de graduação e de pós-graduação. O sinergismo da experiência em pesquisa com o ensino, aumenta a capacidade de aprendizagem dos alunos, com conhecimentos que ainda não estão disseminados nos livros e artigos científicos. Em outras palavras, esse sinergismo do binômio experiência+ensino abre nova sendas de inovação e avanço nas áreas do conhecimento, sendo assim uma grande oportunidade de aprendizagem, da ampliação e da transmissão do saber. 

    A administração de uma universidade também é uma fonte de conhecimentos que deve ser acessível a todes/as/os. Quando um docente fica na administração, ele/ela acumula experiências, aprende e amplia os conhecimentos. Mas, por outro lado, não é raro que o gestor 6 vá se afastando da realidade da sala de aula, do cotidiano do ensino, dos desejos, anseios, movimentos e da própria cultura do fazer-se acadêmico. Nem sempre acontece esse distanciamento, mas há muitos exemplos, cujas consequências indesejáveis custa muito às instituições. Primeiro, a perda de um rico conhecimento que poderia ser transmitido dos docentes-gestores aos discentes e outros sujeitos das IFES. Imaginem o quanto se perde de conhecimentos e experiências quando esse professor-gestor se afasta por décadas da sala de aula? Segundo, a perda da sensibilidade e atenção para com o ser humano, em contraste com a idolatria por números contábeis e planilhas de excel. Terceiro, a falta de exercício de um dos princípios da democracia, que é a alternância do poder. Considerando essas premissas, há, para mim, algumas violações de princípios e corrosão do papel do docente nas IFES:

1. A falta do exercício de ensino, da pesquisa e extensão, viola o pertencimento do sujeito-docente à atividade docente para que foi contratado; 

2. A perpetuação em cargos de gestão, afasta o sujeito-docente do contato com as emoções da vida acadêmica, insensibilizando-o e engessando-o; 

3. Ao permanecer exclusivamente na administração, função geralmente outorgada pela comunidade acadêmica, a experiência acumulada da gestão é concentrada e não transmitida ao corpo discente, que muito poderia aprender e inovar em muitos campos da administração;

 4. O docente dirigente deve ser um exemplo para a democracia universitária, demonstrando desapego ao cargo, mas apego ao pertencimento à docência (ensino, pesquisa e extensão).

    Eu deixo aqui registrada a minha opinião sobre a atual escolha para a reitoria da UFSB. Acho que a gestão atual teve acertos e erros na administração da UFSB. Há ações que devem ser reconhecidas como boas, mas não podemos deixar de desvendar os erros de gestão. Em quase sete anos de gestão, três como pro-tempore e 3,5 anos como gestores nomeados pelo 7 Presidente após escolha da comunidade, sempre em cargos de alta concentração de poder, tiveram oportunidades amplas para acertarem. Mas isso não aconteceu. Há uma insatisfação geral na forma como a instituição foi e é conduzida, como já expresso em muitos textos e contextos. 

    Não me parece que quase sete anos na UFSB, somado aos muitos anos com experiência administrativa em outras universidades, foram suficientes para termos mais satisfação na comunidade universitária da UFSB. Parece ter havido um distanciamento da realidade da sala de aula, da pesquisa e da extensão. Não são as pessoas em particular, mas os desafios da gestão de uma universidade é que podem gerar o cansaço e o esgotamento natural a que todos os seres humanos são suscetíveis. 

    A comunidade da UFSB e o seu território percebeu que é preciso mais do que “experiência administrativa”; é necessário ter vivência continuada no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão para a gestão de uma universidade. Há evidências que os fundamentos e a plataforma de ações da chapa 2 satisfazem esses quesitos indissociáveis e sinérgicos de ensino, pesquisa e extensão + gestão. 

    O Prof. Marcos e a Profa. Ita, demonstraram nos IHACs uma capacidade de gestão imensa, apesar das dificuldades, muitas das quais, criadas por decisões (e indecisões) da gestão central. Consta no currículo desses dois jovens professores a continuada contribuição no ensino, na pesquisa e na extensão, junto com a gestão para a qual foram escolhidos pela comunidade universitária na condução dos IHACs. São exemplos de pertencimento à docência e à ação inerente a um cargo administrativo. 

    Alguém pode argumentar que é legal os atuais gestores quererem continuar na gestão. É legal, sim, mas nem tudo que é legal, é bom para a todas, todos e todes. Nem tudo que é legal, é bom para o exercício pedagógico da alternância de poder e da democracia interna. 8 Ademais, quase 7 anos em cargos de gestão com mais 4 anos, caso venham a ser escolhidos, serão 11 anos de gestão. Há um cansaço, uma insatisfação geral para com a atual gestão. Se assim não fosse, não haveria uma outra chapa candidata à reitoria apoiada por expressiva e crescente parcela da comunidade universitária. 

    Chegou o momento de uma renovação sem perder o que se conquistou até aqui. De alternância, sem deixar de valorizar aqueles servidores técnicos e docentes abnegados que conduziram a UFSB até esse momento. De escutar e acolher todas, todos e todes as diferenças. De mais Democracia e Participação, com a partilha de experiências entre servidores (técnicos e docentes), estudantes e a sociedade desse território. De entender que todos, todas e todes são essenciais e capazes de liderar a UFSB. A chapa 2, com os professores Marcos e Ita, é o melhor caminho para aprofundarmos a democracia interna na UFSB.